sábado, 13 de outubro de 2007

"Votando no Capitão", por Olavo de Carvalho


O PoPa não é um filósofo nem escritor, mas reconhece um bom texto quando encontra. Este, de Olavo de Carvalho, que encontrei no site "A Verdade Sufocada" (link ao lado), analisa o que é "Tropa" e o que este filme significa. Acompanhe:

Votando no capitão

Quem quer que tenha acompanhado as minhas aulas sobre a "teoria dos quatro discursos" - e, graças à internet, é um bocado de gente, a esta altura - sabe que uma das principais dificuldades na arte da palavra é a mudança de clave do discurso poético para o retórico. Ninguém faz isso direito, porque a primeira das duas modalidades está focalizada na exteriorização de percepções íntimas, a segunda no manejo deliberado das reações do ouvinte ou leitor.


Expressão é uma coisa, persuasão é outra. Nos dois casos, trata-se de criar uma verossimilhança, mas a verossimilhança poética é pura coerência entre imagens, a retórica, um acordo bem dosado entre o que você quer dizer e o que o público quer ouvir. Por isso o discurso poético se dirige a um auditório geral e indefinido, abrindo-se à multiplicidade imprevisível das interpretações que lhe dêem, ao passo que o retórico se dirige a uma platéia em particular, permanecendo ineficaz sobre as demais, exceto se ouvido como mera produção poética, desligada dos fins práticos a que visava originalmente.

Daí o fenômeno, tão repetidamente comprovado, de que o artista narrador, seja no romance, no teatro ou no cinema, não tenha controle quase nenhum sobre o sentido político-ideológico da história que narra, o qual sentido não depende da narrativa em si, mas dos fatos do mundo exterior - remotos e fora do alcance do artista - a que a platéia associe os episódios narrados, fazendo destes o símbolo daqueles.


Gênios do porte de um Stendhal ou de um Balzac não venceram essa dificuldade - por que deveríamos exigi-lo dos nossos miúdos cineastas tupiniquins? Todos eles são mais comunistas que a peste, mas isso não impediu que em Central do Brasil o menino perdido, fugindo do inferno urbano, encontrasse no Brasil rural os antigos valores que são a essência mesma do conservadorismo: a família, a religião, a segurança, o amor ao próximo. Nem que Cidade de Deus resultasse numa apologia do que pode haver de mais reacionário e pequeno-burguês: subir na vida por meio do trabalho honesto.


Agora, José Padilha é crucificado pela esquerda porque em Tropa de elite, pela primeira vez, o cinema nacional mostra a violência carioca pelo ponto de vista da polícia, que é o dos cidadãos comuns, e não pelo dos bandidos, que é o da classe artística, dos "formadores de opinião" e do beautiful people esquerdista em geral. Padilha não fez isso porque queria, mas porque, tendo optado por uma narrativa realista, teve de ceder à coerência interna entre os vários elementos factuais em jogo, mostrando as coisas como elas aparecem aos olhos de qualquer pessoa que esteja boa da cabeça e não tenha se intoxicado nem de cocaína nem de Michel Foucault - como o fazem aqueles três grupos de criaturas maravilhosas. O resultado é que no seu filme os traficantes são assassinos sanguinários, os policiais corruptos são policiais corruptos, os policiais bons são homens honestos à beira de um ataque de nervos, os estudantes esquerdistas metidos a salvadores do país são clientes que alimentam o narcotráfico e mantêm o país na m...


Todo mundo sabe que a vida é assim, e é por isso que instintivamente todo mundo acha que descer a mão em bandidos, por ilegal que seja, é incomparavelmente menos grave do que o imenso concurso de crimes - guerrilha urbana, homicídios, seqüestros, assaltos, contrabando, corrupção política - que o narcotráfico traz consigo. Daí que, entre as razões do policial idôneo e as da bandidagem - que são as mesmas da esquerda iluminada - o povo já tenha feito sua escolha: capitão Nascimento para presidente.

Imagem: policiais do BOPE/RJ. Foto do site www.casodepolicia.com

2 comentários:

Charlie Foxtrot disse...

Até o OdC já entrou na polêmica. Falta o Janer, agora. hehe

Mas é bem isso, mesmo. O filme foi algo como um golpe inesperado nas esquerdas, que acreditavam ter doutrinado direitinho a população no sentido de subverter a relação sociedade x bandidos. O povo ainda acha que bandido é bandido e cidadão é cidadão. Ótimo!

Letícia Losekann Coelho disse...

Não olhei ainda o filme, vou olhar! bjs